quarta-feira, 5 de março de 2008

A casa amarela

-Por quê? Por que ages assim? O que foi que te fiz?
-Você está no caminho.
-Ora, eu sempre estive. Desde que aquele pobre homem me fez com suas próprias mãos. Ainda me lembro dele, tão magrinho e miúdo... eu ainda era bem pequena quando penso na primeira
vez que o vi, carregando os tijolos com tanto vigor... batendo a massa para me levantar... lembro da primeira vez que o encarei de frente. Foi então que notei que tinha rugas... e olhos anuviados. Da sua testa escorria suor e ele limpava com a manga da camisa para que não entrasse nos olhos.
Me lembro até da música que ele assoviava... quando eu fiquei alta, ele subia em cima de mim...
me lembro da primeira vez que isso aconteceu, eu me assustei, mas logo percebi que ele estava fazendo algo pra me proteger, e alguns dias depois, todo o meu interior estava ao abrigo do sol e da chuva. Me apaixonei... E ficava imaginando à noite se ele moraria aqui dentro de mim...
mas um dia, ele não voltou mais, e eu fiquei esperando sempre, outras pessoas vieram e me usaram, mas ninguém nunca me tratou como ele, ninguém nunca me olhou como ele, e jamais o suor de outra pessoa me foi tão doce.
-Este homem já não existe mais! Você é velha,
já tem mais de cem anos!
-Seu mal educado! Não sou velha, sou antiga. Não fale assim, enquanto eu estiver em pé
não será esquecido, pois eu sou fruto de seu trabalho, em mim está a sua memória. Hoje, como ele naquela época, também sofro com as marcas do tempo. Como pensa que estará daqui a um século?

Cabum!

Arqueologia em verso livre

O meu ofício é ter como
ponto de chegada a origem .
É fazer falar às pedras.
É catar do tempo
os caquinhos
e com eles compor
o quebra-cabeças
da humanidade.
É extrair dos objetos
seus segredos.
E com eles preencher
a minha existência.
É re-significar o que
não posso compreender.
É esvaziar o objeto
e arrancar dele
a sua utilidade primeira.
É desnudá-lo com a violência
de um molestador
e depois depositá-lo numa
redoma de vidro.
E assim, desnudo,
aos olhos de todos
ele não se cobre
por pudor
mas exibe-se,
acreditando piamente
na importância que
eu lhe atribuí.
E digo para ele:
não é verdade o que me disseste, documento?
E ele, por nunca ter sido assim denominado,
não me responde, estarrecido.